segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Saint Clair Cemin: O criador e as criaturas



Entrevista e Foto: Rômulo Seitenfus

O escultor cruz-altense Saint Clair Cemin, radicado em Paris, é reconhecido como artista em âmbito internacional. Suas obras monumentais espalhadas pelo mundo, apresentam o forte design do artista que mistura materiais como bronze, ferro, madeira, mármore e resinas sintéticas. A cada série de esculturas, provoca os olhos dos apreciadores de arte que instaladas em vários pontos turísticos de diversos cantos do mundo, o artista implanta no cenário perfeito, unindo a arte do homem aos encantos da natureza.
Autor do famoso monumento Supercuia de Porto Alegre, participou de várias edições da Bienal do Mercosul. Consagrado, relembra o início da carreira, a infância campeira, a educação voltada à arte e a busca pelo conhecimento.
Entrevistado na sala da antiga casa onde cresceu, Saint Clair reflete a importância aos momentos vividos, critica a academia contemporânea, cita grandes nomes da arte mundial e explica a linha contínua como forma de expressão.


Como iniciaste na arte? Poderias nos contar um pouco da tua trajetória?

Saí de Cruz Alta aos 17 anos, para São Paulo com meus pais. Minha intenção era estudar Física, eu era muito interessado na ciência, ainda sou. Tenho muito amigos cientistas, é algo que sempre me interessou. Já desenhava muito e, chegando em São Paulo continuei a desenhar, mais do que estudar matemática. Isso decidiu absolutamente a minha sorte, porque se você quer estudar as ciências, a matemática é essencial. Eu desenhava bem, aos 19 anos fazia ilustrações para a Revista Planeta. Desenhava à bico de pena, estava me tornando um artista profissional. Não digo um artista, mas um ilustrador pelo menos. Sempre desenhei e me interessava por arte, havia visto as bienais de São Paulo. Foi a primeira vez que vi arte internacional de tal forma, em 1969 e em 1971. Depois também eu tive a oportunidade de ver a Bienal de 1973. Minha formação artística começou com o conhecimento de artistas, os quais fiz amizade em São Paulo e também com artistas conceituais. Posso dizer que o meu interesse por arte praticamente nasceu com a arte conceitual. Mas, finalmente em 1974 fui para Paris e eventualmente comecei a estudar no Belas Artes e me interessar por gravuras. Como era um desenhista - principalmente gravuras em metal - comecei a profissão de gravurista, continuando em Nova Iork. Me mudei em 1978. No ano seguinte, em 1979, vi uma exposição que me influenciou muito, do Joseph Beuys, o artista alemão da pós-guerra que de escultor tornou-se um artista conceitual muito importante. Tinha uma exposição imensa dele, uma retrospectiva no Guggenheim Museum, e essa exposição me interessou muito, eu ia todos os dias vê-la, passava horas e consegui compreender perfeitamente o que esse artista estava fazendo. Depois disso, a gravura começou a me interessar muito menos, acabei vendendo o meu ateliê, parando de fazer gravuras uns dois anos depois. Fiz várias experiências, desenhos, relevos, uma série de trabalhos que faziam parte do meu desenvolvimento cultural como artista. Ao mesmo tempo, conheci muitos artistas da época que eram jovens como eu e estavam no princípio da carreira deles. Travei conhecimento também com críticos de arte como Allan Jones, que me apresentou pessoas como Leo Castelli, o grande representante dos artistas da Pop Art - todos os grandes da época - ele estava escrevendo um livro a respeito dos galeristas de Nova Iork, então eu ia com ele para fazer as entrevistas. Fiquei conhecendo muita gente interessante, conheci as mais antigas galerias de Nova Iork. Em 1985, por exemplo, eu conheci o pintor Francesco Clemente. Antes disso fazia parte de um grupo de artistas do East Village. Peter Halley, Jeff Koons, George Condo. Estavam todos em início de carreira. No verão de 1983 tive a ideia de começar um projeto que me interessava: Investigar a condição existencial de um artista no seu estúdio. Trouxe muitos materiais para o ateliê e comecei a fazer objetos de todo o tipo. Criei canecas com cara de gente, cinzeiros, bibelôs, era quase uma atividade como no surrealismo, eles chamam de automatismo. Continuei fazendo esses objetos até que me caiu nas mãos um livro a respeito das esculturas de Brancusi. Ele fala que para ele a escultura é talhar diretamente. Pegar uma pedra, um pedaço de madeira e esculpir. Eu pensei que, se Brancusi que era um gênio disse isso, então eu faria. Comprei alguns pedaços de alabastro e uma amiga com quem falei me disse: “Eu tentei fazer escultura, não consegui, tem um monte de pedras na minha casa”. Então peguei todas as pedras, inclusive pedras duras, mármore da Bélgica preto, coisas difíceis, e fiz uma pilha de pneus no meu apartamento para evitar o som - porque o barulho transmitia para o apartamento abaixo. Coloquei um pedaço de madeira em cima e comecei esculpi-las à mão. Fiz isso durante anos e, em 1985 realizei a minha primeira exposição em Nova Iorque na galeria Daniel Newburg, em que apresentei aproximadamente 50 peças, muitas em pedra, algumas em gesso, outras em madeira, duas ou três em bronze que eu havia fundido, todas pequenas. No ano seguinte fiz outra exposição com peças já um pouco maiores e já havia encontrado pessoas que patrocinaram o meu trabalho e a minha carreira tomou absolutamente uma proporção mundial. Comecei a mostrar em toda a parte e, em 1991, participei da Bienal no Whitney Museum em Nova Iorque. Esse foi o meu começo.


Voltando um pouco ao princípio, saíste de Cruz Alta em 1968. O que de significativo da infância influenciou nas tuas obras?

Sinto que a parte mais importante para mim, da minha infância, foi a época em que passei no campo com meus pais. Meu pai plantava trigo e eu passei aproximadamente dois anos da minha infância no campo. As lembranças dessa época são muito fortes, lembro dos tropeiros, do gado. Passava o tempo todo sozinho, mas muito feliz. Fazia uma coleção de ossos, caveiras de animais que catava no campo e as colocava embaixo da minha cama. Isso assustava muito as empregadas, mas minha mãe achava engraçado. Ela era uma mulher muito culta e me fez aprender todos os ossos do corpo. Ensinou-me a ler e escrever antes de eu vir para a cidade. Quando vim para a escola já estava alfabetizado. Aos seis, sete anos, já lia livros. Na escola eu era um menino tímido e tive pouquíssimos amigos. Gostava mais de livros do que de futebol.


Tuas figuras de certa forma são provocativas, impactantes e fortes. Não caíste no clichê, nem no caricato do Rio Grande do Sul. Onde te inspiraste para compor esse foco?

Quando você está usando o material do inconsciente, pode usá-lo de uma forma racional e perfeitamente controlada. Essa forma pode assumir a condição de cópia que, nesse caso, seria uma espécie de pop art ou pastiche, forma irônica e ridícula de repetir uma forma de arte popular. Esses quadros e esculturas gauchescas, alguns talvez tenham seu valor, mas em geral são coisas sem grande valor artístico, se bem que podem ser decorativos. Se eu fosse retomar esses assuntos de uma forma perfeitamente controlada e racional, a única maneira de fazê-los seria de forma irônica, e eu não tenho interesse nenhum à ironia. Esse tipo de trabalho retoma imagens como uma coisa já feita. Eu tenho uma visão da arte que é mais próxima do surrealista, quer dizer, a coisa se filtra através do inconsciente e sai como uma manifestação global do ser. É algo que participa todo o meu ser, desde o inconsciente até o consciente. As influências gaúchas são fortes, mas ao mesmo tempo elas não são nem irônicas, nem cópias de coisas já feitas.


Estamos no exato ambiente em que cresceste. Esta bela e antiga casa é o local que presenciaste o início de tudo. O que sentes ao voltar a esse ambiente?

Este não é o exato ambiente porque, nada é o exato ambiente de antes. Essa casa que estamos agora, quando eu era criança, ela não era branca. Era completamente decorada com os padrões mais fantásticos. Parece que minha avó deixara um pintor russo decorar a casa inteira. Haviam medalhões com figuras místicas, eram cenas da bíblia, desde o teto até o chão. Tudo era decorado com as coisas mais incríveis até que, a minha tia, depois da morte da minha avó, decidiu pintar por cima de branco. Ela queria ser moderna.


Voltar para este local fazes refletir sobre a vida? Tu imaginaste que teu futuro tomaria essa proporção toda?

Não, eu nem sabia que queria ser artista, eu pensava que seria filósofo ou cientista. De certa forma acho que consegui ser isso através da arte. Minha família preservava a casa com arte, e minha mãe recebia as pessoas na porta dessa residência de uma maneira muito afável e educada. Evangelistas lhe davam livros e, ao invés de dizer que não queria, aceitava-os e depois os usava como álbuns para colar todos os recortes das Revistas Cruzeiro e Manchete que ela comprava. Recortava todas as partes que se referiam à arte, quase todas as semanas ou meses. Havia um artigo ou dois a respeito de artistas contemporâneos ou antigos e ela sempre recortava as ilustrações e as colava nesses livros. Eu me lembro de um desses que era sobre nutrição e vigor. Então você tinha um capitulo de legumes e frutas e depois já a primeira pagina era Picasso! E na época a educação era assim, não havia grandes livros de arte.


Disseste em certa ocasião que a falta de uma linha contínua tem sido a única linha contínua do teu trabalho. Continuas pensando desta forma?


Sim, continua sendo isso absolutamente. Sinto que o estilo é uma das características, uma das dimensões da arte. Sinto que a dimensão principal da minha arte não é visível, procuro me surpreender com meu próprio trabalho, tenho impressão que meu objetivo na verdade é fazer algo que seja indescritível. Gostaria de ter um trabalho que eu mesmo não consiga descrever, porque penso que a arte deve ir além da linguagem. De certa forma, derrotar a linguagem. O que vejo é que a arte nos nossos dias tornou-se multidimensional. Qualquer coisa pode ser usada como elemento da obra e a obra pode assumir qualquer forma como a de vídeo, instalação, ou performance. Uma coisa, em compensação foi descartada. O que chamamos a expressão individual do artista, como a encontramos em abundância na arte modernista.
Eu mesmo tenho uma espécie de espírito um pouco rebelde e se existe uma academia a qual sou antagônico é a academia contemporânea. Não a arte contemporânea, pois sou um artista contemporâneo. Mas a academia, isto é uma moda que se estabelece. Eu com todo prazer voltaria à academia de 1890, só para não participar da academia de 2010. Todas essas coisas que são jogadas pela janela e consideradas como anacrônicas e absurdas, eu acho que são uma oportunidade fantástica para um artista, principalmente para mim. Eu as conservo com muito respeito e carinho e gosto de coisas que hoje em dia são consideradas absurdas, como toda a fase modernista. E, antes do modernismo mesmo, todas essas fases da arte que foram deixadas de lado.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Psicóloga Kelli Guidini fala de Bullying



Entrevista e Foto: Rômulo Seitenfus

A psicóloga Kelli Guidini fala ao Jornal Estilo sobre Bullying, a agressão física ou mental intencional e repetitiva, praticada por um indivíduo ou grupo com o objetivo de intimidar o outro. A vítima é quase sempre alguém que se sente incapaz de se defender.
Kelli traça um esboço do que geralmente ocorre, citando três personagens: Vítima, agressor e espectador. Confira detalhes desta entrevista que aponta alerta aos pais e profissionais, como forma de atenção às agressões.




O QUE É BULLYING?

Bullying é o termo inglês que pode ser traduzido como: Amendrontar ou intimidar, representado atualmente por atitude violenta (física e/ou psicológica), intencional e repetitiva, praticada por um indivíduo ou grupo com o objetivo de intimidar ou agredir outro indivíduo que, quase sempre, é incapaz de se defender. Nesse contexto, encontram-se três personagens importantes: Vítima, agressor e espectador.

COMO RECONHECER O BULLYING?
Para reconhecer deve-se observar como ocorrem as relações e os comportamentos. Toda relação hostil que envolva humilhação, depreciação, discriminação, implicância, perseguição com uma atitude maldosa é considerado Bullying. Mas nunca devemos esquecer que o Bullying só acontece porque tem platéia que potencializa as gozações. O espectador é aquele que presencia os maus tratos, não sofre diretamente, mas carrega consequências emocionais, compartilha da perversão ou sofre calado.

O BULLYING É SEMPRE ASSOCIADO AO AMBIENTE ESCOLAR?
O Bullying está diretamente associado à ideia de grupo de iguais, por isso nem sempre ocorre no ambiente escolar. A internet é um novo lugar que vem sendo utilizado como um facilitador do Bullying. Comentários constrangedores de fotos, e-mails ameaçadores, mensagens que inferiorizam no MSN, Orkut, facebook, formspring e outros sites de relacionamento assim como comunidades depreciativas no orkut hoje dão origem a uma nova forma de violência moral, o cyberbullying. A tecnologia vem permitindo que a violência moral seja mais rápida, profunda e anônima. Isso representa um perigo real.


QUEM SÃO AS VÍTIMAS?

Quando pensamos em bullying, na maioria das vezes pensamos que as principais vítimas são os gordinhos, baixinhos, com acne ou alguma alguém que esteja fora do padrão de beleza. Mas o alvo do bullying nem sempre tem alguma característica que foge aos padrões pré-estabelecidos pela sociedade. Em alguns casos, pode ser um sujeito brilhante que por se salientar nos estudos, por exemplo, acaba sendo foco de humilhações. Mas pesquisas apontam que a vítima na maioria dos casos é tímida, com autoestima baixa e geralmente tem uma característica física ou de comportamento que foge ao padrão do restante do grupo. A insegurança e a dificuldade de reação da vítima alimentam a continuidade das agressões. Os ataques contínuos podem desencadear doenças emocionais como fobia escolar, depressão, síndrome do pânico, bulimia e anorexia. Por terem uma personalidade mais introvertida, na maioria das vezes, não conseguem relatar o que está acontecendo com ninguém, por isso geralmente sofrem sozinhos. A vítima se sente acuada, não consegue reagir frente às depreciações e acaba buscando proteção em casa, se enclausurando e fugindo do ambiente traumático que, na maioria das vezes, é a escola.

COMO IDENTIFICAR O AGRESSOR?

O agressor ou bully (valentão) é geralmente um indivíduo que deseja manter sua fama de ‘popular’ e ‘poderoso’ perante os demais. Extremamente julgador e crítico com todos, inclusive com familiares, é aquele jovem que já está acostumado a resolver qualquer conflito pela violência verbal ou física. Não sensível à dor do outro, o agressor se utiliza de qualquer motivo como justificativa da depreciação, desde o corte de cabelo até o estilo diferente. Em situações extremas em que a conversa não surte mais efeito, é possível levar o problema à delegacia de polícia. Na verdade os agressores representam ser pessoas fortes, mas no seu íntimo carregam uma grande inferioridade e carência, por isso procuram ‘chamar atenção’ através do seu falso poder.

O BULLING OCORRE SOMENTE ENTRE ALUNOS OU ABRANGE OS DEMAIS RELACIONAMENTOS DE UMA COMUNIDADE ESCOLAR, COMO PROFESSORES, COORDENADORES E DEMAIS RESPONSÁVEIS?
Sabendo que adolescentes e jovens reparam nas mínimas “imperfeições” e não deixam passar nada, há casos que inclusive professores são vítimas de Bullying. Dependendo da intensidade das agressões, tanto entre alunos quanto com professores ou diretores, a estrutura escolar fica envolvida diretamente, cabendo ela tomar as atitudes cabíveis, sempre buscando envolver a família na prevenção e tratamento da problemática.

O QUE A VÍTIMA DEVE FAZER QUANDO SOFRE DE BULLYING?
Por mais dificuldade de falar que tenha, a vítima deve escolher alguém de sua confiança para contar os fatos. Se não se sente seguro com ninguém próximo é aconselhável buscar ajuda profissional, ou seja, com psicólogos. Geralmente, os pais demoram a saber, por causa do medo de exposição que a vítima tem: “Se eu falar com meus pais, eles vão à escola e isso será mais um motivo de gozação.” Depois de exposto o fato, muitas vezes, o psicólogo pode fazer a ponte com a escola e buscar de uma forma delicada e inteligente trabalhar a questão, não só com os envolvidos, mas com todo o ambiente escolar e familiar. Em todos os casos, a escola deve ser sempre comunicada.

QUAL DEVE SER A ATITUDE DOS RESPONSÁVEIS PELA COMUNIDADE ESCOLAR QUANDO RECONHECEM O BULLYING, TANTO PARA COM A AUTORA COMO PARA A VÍTIMA?
A escola tem uma grande responsabilidade na prevenção do Bullying, para isso deve estar preparada e munida de conhecimentos específicos sobre os comportamentos hostis e agressivos, assim como a inferioridade e passividade da vitima. Os professores são os principais identificadores da problemática, pois conhecem seus alunos. E o melhor modo de identificar o bullying é o professor se colocar no lugar da vitima: “como me sentiria se eu fosse chamada assim?”. O importante é incentivar os próprios alunos a fazer campanha contra o Bullying, criar um espaço de fala e desabafo para eles. Mas acima de tudo a escola deve dar exemplo de respeito às diferenças e também impor os limites.

DE QUE MANEIRA A FAMÍLIA DEVE ATUAR QUANDO SEU FILHO É O AUTOR OU A VÍTIMA DO BULLING?
Nos dois casos é de suma importância que os pais conversem com seus filhos, procurem conhecimento sobre o tema, identifiquem a problemática e busquem ajuda profissional. A família tem papel fundamental no comportamento dos filhos. Um filho violento, julgador, intolerante e acostumado a ver os pais resolvendo conflitos no grito tem grande probabilidade de ser um colega intimidador. Assim como um filho que apresenta baixa autoestima, passivo, diz sim pra tudo, não reage frente provocações e, muitas vezes, é inferiorizado pela própria família, apresenta grande tendência de ser a vitima do bullying. Nesse sentido, a família também deve mudar alguns comportamentos que podem potencializar atitudes agressivas ou passivas demais que comprometam o equilíbrio emocional de seus filhos.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Gilson Martins: O Designer do Século





O Livro Viajando No Design é uma publicação da Editora Estação das Letras e Cores, escrito pelo designer carioca Gilson Martins. As imagens do livro são do fotógrafo gaúcho Rômulo Seitenfus
























O empresário e designer de bolsas cresceu no caloroso cenário do Rio de Janeiro. Reconhecido internacionalmente, com 25 anos de carreira, tem seu produto comercializado em diversos lugares do mundo. Seu trabalho está à venda no MoMa (The Museum of Modern Art) em Nova York. Sua criatividade também já ganhou exposição no Museu do Louvre em Paris, na Galeries Lafayette, no Deutsche Bank Berlin, no Festival de Cannes e na Semana de Design de Milão. Além da longa lista de exposições, é grande também a relação de personalidades que curtem a originalidade da marca - Gisele Bundchen, Cláudia Schiffer, Madonna, Naomi Campbell, Jamiroquai, Bono Vox, Gaultier, Domenico Dolce e Stefano Gabana - entre outros nomes.
Seu trabalho alcançou o ápice da criatividade quando criou uma linha que homenageia o Brasil. São bolsas em formato de Pão de açúcar, bandeiras do Brasil e Cristo Redentor. Assinou criações de embalagens de divulgação para grandes marcas como L'Oréal e Coca-Cola. Foi o responsável pelas bolsas do Festival de Cinema de Cannes e Festival de Cinema do Rio. Criou as bolsas dos participantes do Programa Big Brother Brasil e frequentemente empresta seu produto para personagens das novelas da Rede Globo. Sua história foi escrita no livro Viajando no Design, lançado pela editora Estação das Letras e Cores.
Nesta entrevista, Gilson Martins conta sua trajetória, fala da infância inspiradora no berço carioca e explica o trabalho desde a criação do produto na fábrica até a venda nas lojas.


Como foi o início da sua trajetória?
Estudei na Escola de Belas Artes da universidade Federal do Rio de Janeiro. Na época criei uma mochila por acaso feita em lona de cadeira de praia usado no trabalho do meu pai como estofador. Ao chegar à faculdade tive logo a primeira encomenda e, não parei mais.

Você é graduado em Belas Artes. O que de maior isso influenciou na sua carreira?
Foi muito importante aprender o estudo da forma, cor e textura. No momento em que comecei a fabricar as bolsas pude exercitar em meu próprio trabalho individual todos os ensinamentos teóricos da academia simultaneamente, esclarecendo dúvidas com os professores, com os próprios colegas clientes, podendo inovar de forma consciente.

Como surgiu a grande ideia de criar bolsas em formato do Pão de Açúcar, mochilas em bandeira do Brasil. Foi uma homenagem às suas origens?

Nasci no centro do Rio de Janeiro, no alto do bairro do Santo Cristo. Brinquei com a imagem do Pão de Açúcar durante toda a minha infância. Depois do sucesso com a bolsa em formato de Pão de Açúcar, entendi que criar objetos com imagens e símbolos do nosso cotidiano tocava o público e a sociedade em geral. Comecei a perceber com as bolsas Bandeira do Brasil uma mudança sensível a respeito do patriotismo brasileiro e que esse trabalho poderia evoluir além da moda, como aconteceu.

Você possui lojas da sua marca no Rio de Janeiro e mantém pontos de venda do seu produto no exterior. Faz questão de manter contato com os distribuidores ou prefere focar seu trabalho somente dentro da fábrica?
O resultado do trabalho está todo associado entre a fábrica, a loja, a equipe de vendas e o cliente. O contato frequente com as equipes de venda traz a evolução dos produtos a cada nova remessa. Cada vendedor se comunica pessoalmente dando impressões sobre os produtos. Meu envolvimento com as lojas vai desde a busca pelo ponto ao projeto com os arquitetos, exposição dos produtos, vitrine, venda e supervisão frequente.

Como funciona o processo de produção? Poderia nos contar resumidamente, desde a criação até a entrega nas lojas?
Vou criando os produtos um a um sem pressão de estar envolvido com as tendências e prazos de apresentação de coleção nas lojas. Aos poucos vou fazendo modificações até o tempo de estarem maduras e em produção. Nesse momento são batizadas e entregue nas lojas.

Dentro da sua empresa existe um processo de estágio para pessoas que tem vontade de aprender. Como isso funciona?
Sempre busquei trocar informações com os mais jovens. Moda, marketing, comunicação, publicidade e arquitetura passam pela fábrica conhecendo nossa forma de criar, produzir e ajudar a enxergar as novidades do mercado.

Você já expôs no Museu do Louvre em Paris, suas bolsas são usadas por personalidades como Naomi Campbell, Bono Vox, Giselle Bünchen entre outras tantas que adoram seu trabalho. Qual o segredo desse sucesso?

Os produtos são muito originais e autênticos. Desta forma atraem artistas e personalidades que buscam o novo que surpreende. Criar uma bolsa com conceito próprio e com ideia em bases sólidas e simples, que seduzam o público ligado à cultura, muito mais do que a ideia propriamente ditada pela tendência da moda.

Você imagina que um dia veria seu trabalho e sua vida em um livro publicado?
Realmente não. Quando a Universidade Estácio de Sá me comunicou que eu era o escolhido daquele momento demorei um tempo para assimilar. Somente agora com a nova biografia que participei efetivamente, comecei a entender como é bom ter sua trajetória resumida e publicada.

O que você diria para quem sonha ser designer e não sabe por onde começar?
Primeiro, descobrir que todo início tem um caminho e todo caminho tem de ser encontrado. Então, procure bem o caminho antes de começar com muita fé e vontade para não se perder no meio.

Eveline Espellet: A Dama dos Cinemas





Entrevista e Foto: Rômulo Seitenfus


Cheguei à sala onde a minha entrevistada ensina a língua mais falada do mundo. Porém, minha intenção não é perguntar sobre o estudo da língua inglesa. Não ainda. Ela, a herdeira da rede de cinemas que fez história em Cruz Alta, cresceu assistindo aos astros e imaginando um dia estrelar em Hollywood. Sem contar a ninguém sobre esse sonho, frequentou aulas de canto, dança e dedicou-se à segunda língua. Seu sonho de infância não se realizou, mas o preparo a tornou uma brilhante professora de inglês. Morou perto de Hollywood, conheceu muitos países e hoje divide seu conhecimento com pessoas que almejam romper as fronteiras geográficas. Com enorme bagagem intelectual e incontáveis viagens pelo mundo inteiro, ela me recebeu com a delicadeza de uma verdadeira dama.
“La Espellet” tragava seu longo cigarro no fundo da sala. As poltronas originais do cinema antigo instaladas na sua escola a fazem sentir-se a estrela de seus alunos. Dona de um encantador charme feminino, apagou seu recém aceso cigarro para me estender a mão, como fazem as atrizes de Hollywood ao interpretarem os personagens mais envolventes e delicados do cinema internacional. A diferença é que Eveline não é apenas uma personagem. Viveu a história real dos cinemas de Cruz Alta numa época em que manter a cultura cinematográfica no interior do Rio Grande do Sul, já estava fora do seu controle.
Nesta entrevista, conta sobre as dificuldades e os “Anos de Ouro”, as mudanças tecnológicas que o tempo apresentou e a decadência dos cinemas no mundo todo. Expõe o que pensa sobre filmes brasileiros, a influência cinematográfica na política e na cultura, a censura que ainda abala alguns países e o que acha que está por vir no destino dos telões. Ela conta que, ao entrar numa sala de filmes, relembra cada detalhe do seu passado e faz questão de calcular o número de pagantes pelo contraluz da tela, multiplicado pelo valor do ingresso.
Aos 72 anos e com histórias incríveis para contar, ela é a dama dos cinemas.


Poderia nos contar resumidamente a história dos cinemas de Cruz Alta?
A história dos cinemas em Cruz Alta é muito interessante, quase que folclórica. No início do século XX, chegou ao Brasil a notícia de que os irmãos Lumiére, da França, haviam inventado o cinema. Meu bisavô cheio de orgulho por ser francês, resolveu entrar nessa aventura e abrir o primeiro cinema do interior do Rio Grande do Sul. Cruz Alta foi uma das primeiras cidades do interior a ter luz elétrica e nós devemos isso aos ingleses. A companhia elétrica inglesa que estava trabalhando em Porto Alegre veio a Cruz Alta e instalaram luz e saneamento. Lembro bem que na minha infância as calçadas tinham as tampas dos buracos de esgoto escritas: “Made in England”. Isso ocorreu por volta de 1908, 1910. Era um galpão onde hoje é a Igreja Nossa Senhora de Fátima. Há 100 anos os filmes eram de pouca duração, no máximo seis minutos. Ainda não tinham cadeiras, as pessoas sentavam no chão. O nosso hotel situava-se onde hoje localiza-se o Banco do Brasil. O cinema foi ampliando cada vez mais, os filmes ficaram compridos e o meu avô construiu o Cine Ideal, onde fica hoje a Loja Vencal, ao lado do Clube do Comércio. O interessante é que meu pai e minhas tias foram aprender a tocar instrumentos musicais porque os filmes todos eram mudos. Então a família toda produzia o áudio dos filmes apresentados. Violinos, pianos... Eles contam que os filmes eram passados no lençol e o meu pai era o responsável pelo balde com água, evitando o aquecimento do pano banhado por uns segundos para que a sessão desse continuidade. Na época quem lotava o mundo de filmes não eram os Estados Unidos e sim a Alemanha. Com a vinda da Primeira Guerra Mundial acabaram-se os filmes. Meu avô então transformou o cinema num ringue de patinação. Foi a Porto Alegre comprar vários pares de patins. À noite, encenavam peças no teatro porque afinal tinham que comer. Depois da “Grande Guerra”, os Estados Unidos colocaram os dedinhos de fora, mas não foi o “boom” do cinema americano não. E finalmente O Cantor de Jazz foi o primeiro filme falado feito no mundo. Então o meu avô adaptou o maquinário ao filme falado. Nesse ponto a nossa família, os Espellet, seguiram todos os passos da cinematografia, desde o primeiro filme “A Fábrica”, dos irmãos Lumiére, até o encerramento das atividades. Com a vinda do cinema falado, do galpão foi feito um prédio inteiro e de fato Cruz Alta inteira desfilava nos cinemas, porque era o “must” da temporada. Daí veio a Segunda Guerra Mundial. Só que não houveram problemas com os filmes, porque Hollywood já havia tomado conta do mercado. Daí inventaram o tecnicolor, filme colorido. Depois o meu pai assumiu o cinema, construiu o Cine Rex e abriu mais cinco na região. Santo Ângelo, Ijuí, Panambi... e depois sempre lotados na pós-guerra. Na década de 50, eram a sensação de todos os tempos. Foi construido o Cine Rio para desafogar o Cine Rex e o Cine Ideal. Só que na década de 50, junto com os cinemas entrou a televisão e nós da família já começamos a prever que haveria uma interferência nos cinemas. O que não prevíamos é que o motivo do público deixar de ir ao cinema não seria somente a televisão e sim a falta de segurança nas ruas. A década de 70 foi a derrubada dos cinemas em Cruz Alta.

As pessoas ainda te cobram pelo fim das salas de cinema em Cruz Alta?
Quando fechamos os cinemas nos cobravam muito. Aí eu perguntava: “Escuta fulana. Há quantos anos tu não vais aos cinemas”? A pessoa respondia: “Ah, eu acho que há uns dez anos”. Eu dizia: “Então! Como tu queres que eu continue?” Ninguém ia ao cinema. Mas ninguém queria que fechássemos. Algumas me perguntam: “Eveline, porque vocês fecharam os cinemas se a cidade tem 70.000 habitantes e em Porto Alegre eles vivem cheios”? Eu digo: “Vocês se enganam muito. Porto Alegre tem 2.500.000 habitantes. O cinema dos shoppings tem 150 lugares. São raríssimas as vezes que lá enchem, a não ser um ‘Titanic’ ou ‘Avatar’. A proporção no número de habitantes de uma cidade se reflete nas bilheterias. Se 2.500.000 não enchem uma sala de 150, imagine se uma cidade de 63.000 habitantes vai encher uma de 150”... Ficávamos esperando as pessoas e isso não acontecia, então nós passamos para uma outra companhia - essa não aguentou – a mesma que reabriu o cinema no shopping Erico Verissimo há poucos anos.

Quais foram os “Anos de Ouro” da história do cinema?
Sem dúvida foi a década de 50 até 64. Por 14 anos não demos conta da frequência dos cinemas, tanto que foram construídos outros. Eu me lembro que o pai falou: “Eu tenho dinheiro pra comprar uma fazenda ou construir outro cinema”. Como dava dinheiro nós sugerimos construir outro cinema. Tu imaginas! Meu anjinho estava de férias nesse dia (risos). O Cine Rio nos custou uma fazenda porque não quisemos comprar terras pensando que seria a melhor opção. Mas olha, sabes que era lindo de ver? Uma cabecinha do lado da outra. Haviam 1.200 lugares e nós enchíamos, dava um orgulho de ver. Até que acabou. A sorte nossa, da família, é que eram os pontos mais valorizados da cidade. Ninguém construiria um cinema no fim do mundo. Então – com exceção do Cine Rio – ficavam na rua principal. O “Cine Rex que alugamos para a Volpato e o Ideal onde hoje é a Vencal. Por sinal graças a Deus, meu pai não chegou a presenciar a decadência. Essa é não somente a história de uma família como é a realidade dos cinemas no mundo inteiro. Mesmo assim agradeço a Deus por termos tido um negócio de 85 anos, que bem ou mal conseguimos sustentar. Fechamos porque a realidade é essa.

Quais os fatores que causaram o comprometimento das telas?
Cinema é hábito. Na minha infância o prêmio era ir ao matinê no domingo. E esse hábito é que forma o frequentador. A pessoa que não está acostumada não vai, a não ser que seja um Titanic ou algo que o valha. Se tirássemos nota baixa na escola, o castigo era não ir ao cinema no domingo. O automóvel também prejudicou a frequência. Na década de 40, 50, a única maneira de um casal de namorados darem as mãos, se abraçarem, se beijarem, era dentro da sala de cinema. Então todos os namorados iam assistir aos filmes. Com a chegada do automóvel eles não precisavam mais ir. Aqui em Cruz Alta, os mais abastados da época só saíam para passear com seus carros aos domingos. Então essas famílias também não frequentavam mais para passear de carro. Nem o casal, nem os filhos e nem os netos. A violência foi outro fator que impedia as pessoas de saírem de casa. Eu diria que um fortíssimo fator que acabou com os cinemas no Brasil também foi o filme nacional. Teve uma lei da Embrafilmes – hoje não existe mais – que de cada quatro domingos, três deles seria passado um filme nacional. Nós quase morremos, porque ninguém sai de casa para ver filme nacional. Tínhamos um domingo de renda. O restante era filme nacional com exceção dos pornográficos: A Dama da Lotação, Dona Flor e Seus Dois Maridos, filmes com Sandra Bréa, Sônia Braga... Esses sim, lotavam as salas. Mas foi só uma febre. Depois o pessoal cansou. O cinema nacional praticou o que chamamos de autofagismo. Ele devorou a si próprio.

Tu presenciaste muitas mudanças tecnológicas nesses anos frente aos negócios cinematográficos?
Em 80 anos nós passamos do mudo ao falado, do falado ao tecnicolor, do tecnicolor ao cinerama de 190 graus, que por sinal não vingou e nos causou um gasto imenso. Tivemos de investir em telas e lentes caríssimas. O terceira dimensão não é novidade. No final da década de 50 passamos um filme em terceira dimensão: Museu de Cera, com Vincent Price. Os óculos eram cor de rosa e tínhamos de desajustar o foco. Daí o filme se passava fora de foco, tu colocavas os óculos e ficava em terceira dimensão.
Depois voltaram as telas pequenas em filmes pequenos, porque os cinemas tiveram que diminuir o tamanho das salas. Para um cinema de 200 pessoas não poderia ter uma tela gigante.

Achas que melhorou a qualidade dos filmes brasileiros?
Em partes. Posso contar nos dedos os brasileiros que são bons. O Pagador de Promessas é um deles. Também saí encantada do cinema quando assisti a Dois Filhos de Francisco. A qualidade melhorou, mas ainda falta muito. O nosso país tem as melhores novelas do universo. Eu viajo o mundo todo e conheço os canais de TV mundiais. Os prêmios estão aí pra comprovar. Aí eu questiono: Se o Brasil faz tão bem novelas, porque deixam a desejar nos filmes? Quando os nacionais estão em cartaz eu não vou assistir. Acho que tenho aquele trauma de todo dinheiro que perdemos com eles.


O filme Cinema Paradiso trata sobre a questão da censura. Já viste este filme?

(O filme se passa numa pequena cidade italiana com um cinema comandado por padres. Nas telas os beijos eram censurados. Quando houve a decadência, o ex – projecionista entregou para um amigo - antes criança e agora homem – todas as cenas omitidas. Quando esse mesmo homem volta para a cidadezinha - no presente já bem sucedido – ele entra no cinema decadente e vê todas as cenas no telão. Os beijos proibidos tornam o filme emocionante)
Maravilha. Maravilha! Um dos melhores filmes que eu já vi. Eu chorava porque inclusive naquela parte da censura muitas vezes nós fazíamos isso aqui. Cortávamos cenas incríveis. Hoje não seria censura, mas na época era por questão de dois minutos. Um abraço, um beijo, não eram cenas chocantes e na época. Cortávamos porque é muito fácil. Tu cortas e depois colas de novo. Antes de entregar o filme, colávamos novamente.

Mas tu vias as cenas censuradas?
Claro! Milhões de vezes! O meu pai não nos deixava ir aos cinemas ver as partes censuradas, mas íamos mesmo assim. Então esperávamos ele sair e corríamos para a cabine (risos). Minhas irmãs, os primos e eu. Acho que no fundo o pai sabia. Mas também, a censura da época comparando com a de hoje, tenhas dó. As imagens omitidas da época, tu passarias hoje em matinês sem nenhum problema.

Como ocorria esse controle da censura?
A censura vinha com o filme acompanhado de um certificado do juizado de menores e o fórum mandava um fiscal. Quando acontecia de termos de cortar as cenas, nós explicávamos a situação para o público e eles entendiam.

Como tu vês o futuro do cinema?
O cinema não vai acabar nunca. Mas, como estão acabando as salas de projeção e a tecnologia já está toda digitalizada, acredito que o futuro do cinema será na nossa própria casa. Será gerado um transmissor ao vivo de acordo com o tempo de cada pessoa que vai escolher o momento de ver o filme. Se a matriz for em São Paulo, por exemplo, eles acionarão o filme para a pessoa assistir em casa. Já temos esta tecnologia, mas não oferecem os lançamentos. E acredito que incluirão os lançamentos e isso não vai demorar muito para acontecer, embora no início o custo será elevado.

Se existisse um projeto da prefeitura ou do governo de construir um cinema público em Cruz Alta, tu achas que funcionaria?
Olha, várias cidades do interior tentaram investir nessa ideia. Prefeituras patrocinaram, fundaram clubes de cinema, as pessoas pagavam mensalidade e não deu certo. Não adianta. Perdeu-se o hábito.

Quais os filmes que despertam a tua visão cinéfila?
E o Vento levou foi o que mais me marcou. Nada bate ele. Depois o que tu mesmo citaste, Cinema Paradiso. Um filme que foi feito para ser um classe B e se tornou um ‘must’ do cinema é Casablanca. Fantástico! O Pagador de Promessas também me marcou muito. É uma vida inteira voltada ao cinema. Difícil citar apenas alguns.

O que sentes ao entrar numa sala de cinema? Matas a saudade?
Sou cinéfila. Pego ônibus até Porto Alegre só pra ver os lançamentos na tela grande. A Primeira coisa que eu faço quando entro numa sala de cinema é contar o número de pessoas que se fazem presentes na sala e multiplico pelo valor do ingresso (risos).

Tu vês um filme mais de uma vez? Gostas de assisti-lo novamente depois do passar dos anos?
Sim. Adoro fazer isso porque a gente vê o valor do filme com o passar dos anos. Se for bom ele vai ter ainda o impacto depois de um tempo.

O 3D conquistou boa parte dos cinéfilos. Achas que o cinema vai adotar essa ideia permanentemente?

Acredito que sim. Eu assisti ao Avatar primeiramente sem os óculos e depois fui assistir novamente, desta vez com os óculos. É uma diferença incrível. Mas acredito sim que essa ideia possa se difundir, embora não seja uma tecnologia tão moderna. Já existia na história do cinema. Mas acredito que até a TV adote o 3D.

O que tu achas dos filmes produzidos pela Índia?

Eu estive na Índia no auge da campanha de esterilização masculina. Os homens que se esterilizassem ganhavam vários brindes: Um saco de arroz, um guarda-chuva e dez ingressos para o cinema. O cinema ainda faz parte da vida, dos sonhos do ser humano. Eu nunca esqueço que em 1970, quando já estávamos dando os últimos suspiros, eu fui assistir a um cinerama lá. Um cinema imenso de uns 2.500 lugares. Os cartazes de filmes ocupavam a fachada inteira. Voltei à Índia em 2005 e continuam os cinemas. O filme produzido por eles, Como ser um milionário, mostra bem a realidade da Índia. Eles ganharam o Oscar merecidamente. Trabalham com todo o misticismo da cultura, vivem seus sonhos.


E esta questão dos sonhos que salientas bastante, de onde trazes essa ideologia?

(Risos)... Isto tudo vem justamente da educação que eu tive. Minhas irmãs e eu fomos educadas praticamente dentro de um cinema. Meu pai conversava conosco, falava sobre os artistas. Eu me tornei professora de inglês devido ao cinema. Na época um filme chamado Fiesta Brava, com a Esther Williams. Eu assisti ao filme 11 vezes e decorei todos os diálogos em inglês. Havia uma dança que se chamava La Raspa e foi lançada por causa do filme. É claro que eu aprendi a dança. Eu cantava, dançava. Quando tinha oito ou nove anos o meu sonho era ser artista de cinema. Mas não o cinema no Brasil que eu já detestava. Era ser artista de cinema americano (risos)... E logicamente tinha de saber inglês, dançar, cantar, tocar piano. Então estudei tudo isso sem a minha família saber da minha verdadeira intenção. E imaginas, hoje em dia talvez eu fosse atrás desse sonho. Mas em 1940 era ridículo pensar dessa maneira. Mas esse sonho abriu as portas para eu ser uma das pouquíssimas professoras de inglês da época, e tu vês que indiretamente eu não deixei de ser uma artista, porque um professor é um artista. Eu sou a estrela dos meus alunos.

Histórias de um taxista




Texto e Fotos: Rômulo Seitenfus


Odevino Portinho, mais conhecido por Dido Portinho, é apaixonado por tudo o que faz. Taxista há trinta anos, cantor e declamador, já viu e ouviu de tudo nesta vida e agora tem muitas histórias para contar. As traições entre passageiros e o caso do bebê que nasceu no banco de trás do seu táxi a caminho da maternidade, são alguns desses contos verídicos.
É preciso coragem para enfrentar os riscos que esta profissão apresenta e isso é o que não falta em sua personalidade. Depois de perder muitos de seus amigos e colegas de profissão por assalto, Dido não desanima e nos fala porque quer continuar.
Nesta entrevista, ele reflete sobre a segurança, se emociona ao lembrar dos amigos e colegas que partiram no ofício da profissão e mostra que ainda tem inspiração para seguir em frente improvisando prosas e cantando as faixas de seu CD, lançado pela NCK.
Basta entrar no seu táxi para conhecer um pouco do seu universo fantástico. Ou, ler esta entrevista imperdível!




Como o senhor ingressou na profissão?
Quando eu saí do exército fui trabalhar de taxista. Meu pai era contra. Ele dizia que ia ser muito perigoso, que eu correria riscos, mas como era de maior fui mesmo assim. Meu irmão até arrumou um carro de um amigo, o finado Carlos Maidana. Mesmo contrariando meu pai eu não me arrependo de ter ficado trabalhando na praça.


O início foi neste mesmo ponto aqui?

Sim. Eu entrei na praça dia 22 de março de 1973. Quando cheguei aqui na frente do Ginásio Municipal, onde estou até hoje, não existia nada. Nem sombra tinha. No verão nos abrigávamos no frescor do antigo Mercado Côco, que ficava aqui na frente e no inverno quase congelávamos dentro dos carros. Não tinha esta casinha, foram tempos difíceis. O supermercado nos acolhia do sol da manhã e nas tardes íamos para as sombras do ginásio. Nos primeiros quatro anos trabalhei como empregado e depois comprei meu próprio carro.



É bom ser taxista?
Eu amo minha profissão. Só descanso quando tenho outro motorista à disposição. Caso contrário trabalho direto, até nos feriados e domingos. Mesmo quando estou em horário de almoço e um cliente me liga pra eu fazer uma corrida, simplesmente deixo o prato de lado e vou atender o passageiro. Não posso deixá-lo na mão, pois o cliente é prioridade.

Já ocorreu de o senhor realizar a corrida e no final dela a pessoa negar o pagamento?
Muitas vezes. Já perdi muitas corridas, acontece muito de chegarmos no destino final e a pessoa não querer pagar. Daí acabamos perdendo a corrida. Se é um marginal eu já nem reajo. Minha vida é muito mais importante que aquele dinheiro.

O que mudou na segurança de uns anos para cá?

A segurança perdeu seu controle por que a violência está cada vez maior. Eles (assaltantes) não tem mais medo de nada. Eliminam pessoas como matassem galinhas. Vão pra cadeia e não ficam muito. Antigamente o preso ficava na cadeia. Hoje eles nem querem mais se preocupar porque sabem que se entrarem, sairão logo. Apesar ter sido tempos difíceis, antes era bem mais fácil, não aconteciam tantos assaltos como hoje. Os crimes agora parece fazer parte do cotidiano. Isso é muito triste.

Como a sua família reage a esta situação da falta de segurança?
A vida do taxista é insegura. Saio de casa sem saber se vou voltar. Meu filho pergunta: “Pai, porque você vai trabalhar hoje? Vai voltar para a praça?” E eu respondo: “Eu vou. Enquanto vocês me verem entrando e saindo por esta porta está bom. Esta é a minha profissão.” Eu sei que também é a minha missão. Preciso continuar.

Como o senhor encara a questão do alcoolismo dentro do seu táxi?

A gente trabalha muito isso porque ocorre constantemente. As pessoas entram no táxi bêbadas. Eu as atendo da melhor forma possível, da mesma maneira que atenderia se não estivessem alcoolizadas.

O senhor já presenciou cenas de traições conjugais?
Constantemente. Acontece muito de mulheres saírem para trair e pedem para não contar onde foi que as levei. Mas já aconteceu de vir o esposo aqui e querer saber onde ela havia ido.

Qual a história mais inusitada que presenciou dentro do seu táxi?
Foi um bebê que nasceu dentro do meu carro a caminho da maternidade. Isso ocorreu há 28 anos. Era madrugada e um homem de nome Manoel me chamou do bairro Brum. Foi tão sincero que me avisou que não tinha dinheiro para pagar a corrida e a esposa estava quase ganhando bebê. Eu corri pra lá e ela estava de fato já em fase de parto. O táxi era um Corcel branco, quatro portas, com capota preta. Para a nossa surpresa, o bebê nasceu dentro do carro quando estávamos chegando ao hospital. Eles ficaram tão emocionados que me perguntaram se eu aceitaria ser o padrinho do bebê. Eu me senti único. A Mirele é a minha primeira afilhada, mora em Ijuí e tem dois filhos. O compadre Manoel trabalhou posteriormente aqui na praça comigo.

O senhor gravou um CD de prosas que foi lançado pela NCK...
Sim. Eu gravei o CD aqui e o Jorge Freitas levou para São Paulo para ser lançado. Primeiramente foram produzidas 1.000 cópias.

(Seu Portinho pede licença para atender um cliente ao telefone)

(Continua) Onde paramos?

Me contava sobre as 1.000 cópias que foram vendidas...


Ah sim! Depois que estas foram vendidas eu peço 300 cópias por vez e sempre vendo. Comercializo no táxi, nas apresentações que faço. Tenho muitas amizades e o pessoal sempre compra para presentear os amigos.

Os passageiros ouvem seu CD enquanto são conduzidos ao destino?
Alguns sim. Eu mostro o CD e se a pessoa se interessar em ouvir eu coloco para ela escutar. É uma forma de entreter meus passageiros. Além de taxistas somos também ouvintes. Muitos estão com problemas que precisam desabafar. Os clientes nos contam coisas que não revelam a ninguém. Quando isso não acontece eu uso o recurso do CD que as pessoas gostam muito. Quando não estão interessadas eu logo percebo. Daí fico na minha. Não é sempre que combina com o estilo da pessoa. Mas na maioria das vezes elas prestigiam.

Sobre esse dom de improvisar prosas? Como isso acontece?

Eu faço uma prosa inédita na hora. É só me dizer o tema do assunto que eu improviso. Acredito que seja um dom divino porque nem eu sei explicar o que ocorre. De acordo com o assunto, as palavras vão fluindo. Acho que tenho uma estrela muito forte comigo porque quando inicio não sei nem a primeira palavra que vai sair. Depois que começo me vem uma emoção forte, um arrepio e tudo acontece. Não sei te explicar mesmo. Se me pedirem para repetir eu não lembro de nada. O tema sim. Mas a segunda prosa vai sair totalmente diferente da primeira.

O senhor improvisa dentro do táxi?
Sim. Dentro do táxi e também em festas de aniversário, homenagens especiais. No táxi, só se a pessoa pede. E quando isso ocorre, geralmente ela vibra junto. É muito gratificante. Se percebo que o ouvinte está gostando, parece que fico mais vulnerável à emoção. As palavras vem de uma maneira que até eu fico surpreso.

E quanto aos acontecimentos da sua profissão, quais os que mais lhe marcaram em toda a sua trajetória?
A gente se choca cada vez que matam um colega da gente. A pior hora da vida é quando vemos um colega no caixão.
(Seu Portinho emociona-se... Pausa para chorar)

O senhor pode expressar essas lágrimas?
(Silencia por alguns segundos)
É que eu sou muito emotivo.
(Mais alguns segundos de pausa)

O que está lhe passando pela cabeça nesse momento?

Ficam passando imagens na minha cabeça. A gente recorda o passado. Não adianta não querer lembrar. Tentamos espairecer, brincamos, mas mesmo assim as lembranças vêm. Infelizmente todos nós aqui estamos no mesmo caminho. Sabemos que corremos o mesmo risco. Mas é a vida. Temos que tocá-la.

Esses assassinatos foram por motivos de assalto?
Sim. Uns dez taxistas já foram mortos por assalto, por uns trocadinhos. Muitos deles eram meus amigos.

O senhor pensa em parar de trabalhar como taxista em função disso?

Às vezes penso, mas não quero parar porque se nascemos para uma determinada tarefa e se é a nossa missão, temos que persistir. Alguém tem de ser taxista para conduzir as pessoas nos momentos corridos, nos momentos difíceis. É um trabalho bonito e eu acredito na minha profissão.

Para finalizar essa entrevista, o senhor toparia nesse exato momento, fazer uma prosa improvisada em versos para os nossos leitores?


(O entrevistado olha para a calçada do ponto em que estávamos para observar as pessoas que passavam curiosas)
Tá. Mas eu vou cantar baixinho então.

Pode ser. Sinta-se à vontade...

Rômulo já que tu pediu
Não vou deixar de fazer
Eu sei cantar de improviso
Isso você pode ver
Estudo eu não tenho muito
Mas eu sei ler e escrever
E pra cantar de improviso
Eu não to num paraíso
Mas a homenagem é pra você
A homenagem é pra você
É assim minha intenção
Entregue pros teus leitores
O meu sincero perdão
Esses versos que eu faço
Com categoria e atenção
Deus que me dá essa guia
Pra eu fazer improvisação
To cantando aqui no ponto
Na ave que é a profissão
E você me entrevistando
E ouvindo a minha canção
Já respondi o que pergunta
E agora eu quero encerrar
Trinta anos de trabalho
Deus está a me iluminar
Você que ta trabalhando
Peço pra ele te ajudar
Todos os passos que tu deres
Que possas continuar
E você é um guri novo
Tem futuro pra enfrentar
Enxergo na tua pessoa
Teu modo de trabalhar
Que você é inteligente
Só vai levar pra ganhar

Vivian Proença: A conquista de um gênero





Por Rômulo Seitenfus


Esta é a história da menina que nasceu no corpo de um menino. Cruz-altense, cresceu numa sociedade de padrões definidos. Sofreu preconceitos, lutou sozinha e foi buscar seu lugar ao sol na capital gaúcha. Seu grande sonho era estudar e se tornar uma mulher de destaque. Os inúmeros obstáculos enfrentados, também na cidade grande, serviram de impulso para alcançar seus objetivos.
Uma reportagem que se passava no noticiário da televisão local, anunciava a cirurgia da troca de sexo. Correu para o hospital divulgado, para se candidatar a uma vaga aos bisturis. Diagnosticada em todos os testes médicos como transexual, foi aprovada e submetida às operações.
Eis que surge Vivian Proença. Uma mulher linda, inteligente, e cheia de histórias para contar. Viajou pela Europa e especializou-se na área da beleza. Passou pelos estágios da grande mudança e trocou seus documentos da nova identidade, que permite legitimar-se como cidadã de nome feminino. Retornou para a cidade natal, para resgatar tudo aquilo que antes estava fora do seu alcance. Mais feliz do que nunca, hoje leva a vida que sempre pediu a Deus. Dona de um conceituado salão de beleza que leva seu nome, Vivian Proença é hoje a mulher de destaque que um dia almejou ser. Cheguei no salão de beleza para conversar com a hair designer. Enquanto a minha entrevistada finalizava o cabelo de uma de suas clientes, aguardei no sofá, antes do início do bate-papo. O salão, decorado em tons de branco, expressa um ar moderno na arquitetura do ambiente. O tronco de uma possante árvore instalada no teto do salão, causa impacto aos olhos de quem o vê.
Vivian veio ao meu encontro. Os finos traços do rosto e o tom de voz extremamente feminino, não causam dúvidas de que estava na frente de uma verdadeira mulher.
Autêntica e forte, ela conta as dificuldades e conquistas. Assumidamente transexual, desdobra-se no papel de mulher brilhante e profissional atuante, sem esquecer o seu passado e a sua trajetória.



Você pode nos contar um pouco da sua história?
Nascida cruz-altense no dia 1º de abril de 1983, tive uma infância um pouco diferente. Eu me sentia perdida, porque nasci com o sexo biológico masculino, mas com a cabeça e a alma feminina. Desde que eu me conheço por gente, sempre fui adepta às brincadeiras de garotas. O meu maior choque foi quando entrei no colégio e existia essa diferença do menino e da menina. Isso foi uma agressão porque, na minha cabeça eu sempre fui mulher, sempre tive essa essência feminina. Foi muito difícil, porque a sociedade em si é muito preconceituosa. A minha família não entendia, sofri desde criança. Em nenhum momento senti aquilo como uma escolha. Sempre soube que nasci assim, só que me questionava o porquê de todo aquele sofrimento. Não entendia e não sabia o que eu havia feito para passar por tudo aquilo. Mas aprendi com a maturidade e infelizmente tive de sair de casa muito cedo. Com 14 anos, fui embora para Porto Alegre e foi lá que eu me aceitei. Não bastava somente as outras pessoas me aceitarem. Eu precisava me aceitar também para enxergar a beleza da minha pessoa. Sou singular, era diferente de tudo e é muito mais fácil ver o diferente como algo ruim do que bom. Tenho certeza que, se tivesse nascido biologicamente mulher, eu não seria a pessoa que sou hoje. O que sou hoje, é resultado de toda a minha vivência até agora. Foi difícil, mas necessário, fazia parte da minha vida. Eu lutei para estar ali, lutei pelo meu espaço. Sempre disse que os outros não eram obrigados a me amar, nem a gostar de mim. Mas eram obrigados a me respeitar. Todo mundo tem direito ao respeito. Eu batalhei e conquistei o meu. Fui uma das mais jovens transexuais a realizar a cirurgia no Rio Grande do Sul. Aos 19 anos me operei, aos 20 mudei toda a minha documentação. Troquei desde a certidão de nascimento. Sei das minhas limitações, sempre vivendo a realidade de ser uma transexual. Mesmo com a alma feminina, mesmo tendo uma postura feminina mediante à sociedade, eu sei que eu sou transexual e tenho orgulho disso.



Voltando um pouco à sua infância... Você se via como mulher e quando ia à frente do espelho se deparava com uma figura masculina. Como era isso?

Era muito triste. Eu tinha preconceito comigo. Na infância sofri muito, porque não sabia como lidar com essa situação. Eu não podia me abrir com meus pais, porque tinha certeza que eles não entenderiam. As pessoas na minha volta não compreendiam toda aquela situação, me recriminavam. Eu não me entendia, porque eu não era homossexual, não era travesti. Na minha cabeça eu era uma menina. Hoje, existem estudos que apoiam os transexuais porque, cientificamente isso é uma disfunção do cérebro. A pessoa nasce com o sexo biológico masculino e com o sexo psicológico feminino.

Quando decidiu realizar a cirurgia de mudança de sexo e como isso ocorreu em sua vida?
Eu tinha 16 anos e morava em Porto Alegre há dois. Assisti a uma reportagem na televisão, que o hospital de clínicas estava fazendo a cirurgia da mudança de sexo. Para mim foi uma luz no final do túnel, porque eu achei que isso fosse algo inatingível. Era um sonho. Antes eu era infeliz, pois não aceitava aquele sexo biológico. Me recriminava, me repudiava, não tinha relações, não namorava. Eu era sempre fechada dentro de casa. Quando vi essa reportagem, fui correndo para o Hospital de Clínicas. O tratamento era feito em dois anos e quando completei meus 18 anos, realizei dois anos de tratamento. Tive acompanhamento com psicólogos, psiquiatras, endocrinologistas, uma equipe médica que realiza a avaliação para esclarecer se a pessoa é, de fato, transexual. O meu caso foi constatado logo no início, mas como é uma lei tendo que cumprir esses dois anos, quando eu completei os 18, precisei de uma liminar do juiz para eu operar. A maioridade se dava aos 21 anos, mas com essa permissão pude realizá-la sem problemas. Eu sempre dizia que a metade do caminho seria a cirurgia e a outra metade seria a troca dos meus documentos, e que depois disso eu me sentiria completa. Aos 19 anos eu consegui realizar a operação e poucos meses depois foi efetuada a troca dos documentos.

Qual a sensação que você sentiu depois dessa grande mudança?

Eu passei a me sentir completa. Um grande alívio e uma sensação de vitória. Conquistei tudo sozinha, em princípio sem o apoio das pessoas que me rodeavam. Eu tive somente o apoio da minha família de longe e isso foi uma conquista minha. Um gostinho que não tem comparação. A partir disso, prometi pra eu mesma que seguiria a minha vida fazendo as coisas que sempre quis. Foi aí que continuei meus estudos, fui me profissionalizar, morei um tempo na Itália. Foi aí que eu comecei a viver.

Hoje se sente inteiramente mulher?
Me sinto 100% mulher. Admiro muito as mulheres e tenho vários exemplos delas na minha volta. A primeira é a minha mãe, que desde que a conheço é uma mulher muito batalhadora. Trabalhou na rua, no centro de Cruz Alta. Aprendi a amar a minha cidade. Saí daqui com muita mágoa e de repente senti que uma missão vinha para resgatar o que eu não consegui antes.

E como aconteceu isso?

Chegou um momento em que a minha mãe estava precisando de mim e eu vim embora. Confesso que com um pouquinho de sofrimento, porque eu pensava que nunca iria voltar para Cruz Alta. De repente eu me apaixonei novamente pela minha cidade, pelas pessoas daqui. Hoje eu vivo um resgate de tudo o que não pude viver quando passei minha infância aqui. Essa cidade me faz feliz. As pessoas que me rodeiam, as minhas clientes, o carnaval que participo todos os anos. Estou feliz com o meu salão de beleza. Está crescendo cada vez mais, uma vitória a cada dia.

Podemos dizer que você conquistou ser mulher?
Eu sempre digo que eu criei a mulher que eu queria ser. Eu idealizei a mulher que eu sonhava e fui atrás dessa realização. Hoje eu posso dizer que sou. Foi uma grande vitória de uma batalha enorme que venci.

O que mais lhe surpreendeu depois de tudo isso? Há algo que você não esperava e lhe aconteceu?
O que mais me surpreendeu foi que tudo o que eu queria era ser mulher. E depois de tudo isso, eu me aceitei como transexual. Eu não me aceitava antes, praticamente repudiava. E de repente, me aceitei como uma transexual operada, com documento trocado, que posso viver, pode casar, como uma pessoa que se tornou mulher, mas que no fundo eu sei que sou uma transexual pelo caminho que percorri para chegar até aqui. Essa foi a minha grande surpresa.

Você teria alguma história inusitada que lhe aconteceu em função da troca de identidade?
Os meus documentos com minha nova identidade e meus papéis ainda não haviam chegado. Eu estava na Europa, fui levada para uma sala e constataram que eu era mulher. Como nos documentos constava a minha antiga identidade, fiquei presa por cinco dias.


Como a sua família reage? Eles te aceitam bem hoje?
Sim. Hoje. É muito difícil essa situação. Eles não compreendiam a realidade. Eu sou a mais nova depois de três mulheres e nasci no lugar do único filho homem. Quando eu tinha uns três, quatro anos, minha mãe viu que tinha algo diferente. Eu sempre fui muito feminina, mas isso era da minha natureza, nada era forçado. Quando tinha uns 12 anos já sabia quem eu era. O meu pai não aceitava, era um inferno conviver dentro de casa. Aos onze anos comecei a tomar hormônios e os seios começaram a crescer. Tínhamos piscina em casa e eu já não queria mais entrar para nadar. Ele me via na rua com as amizades, cada vez que chegava em casa era uma briga. Então minha mãe me chamou para conversarmos. Ela quis saber o que estava acontecendo e me perguntou se eu não gostava de mulheres. Respondi que eu era uma mulher. Ela me perguntou se eu tinha certeza que era aquilo que eu queria. Disse a ela que não se tratava de querer e sim de ser. Não tive escolha em nenhum momento. Eu nasci assim. Essa história de opção sexual não existe. É impossível que uma pessoa em sã consciência vá optar por passar tudo o que eu passei. Acontece que eu não poderia em hipótese nenhuma deixar de ser eu mesma. Ou escolheria viver no corpo de um homem que não era eu, porque o eu interior era uma mulher. Aos quatorze anos tive uma oportunidade de ir embora, aproveitei e fui. Minha família não aceitava. Eles diziam que aqui eu não conseguiria viver. A minha família veio a me aceitar anos mais tarde. Me falaram que ia ser muito ruim para mim e também para eles. Naquele momento eu entendi que eu teria de me retirar da cidade.

E como foi sair de casa nessas circunstâncias?
Foi muito difícil. Eu comecei a estudar. Em nenhum momento eu queria parar meus estudos. Cheguei em Porto Alegre ainda adolescente, telefonava chorando todos os dias para minha mãe. Um dia a minha irmã atendeu ao telefone e me disse que não adiantava ligar chorando, porque a mãe ficava mal aqui, não resolvia esses problemas e eu também não ficaria bem. Acrescentou que, ou eu voltasse para casa ou enfrentasse isso tudo, porque iria passar. Aquilo foi um estalo. Eu tinha de enfrentar, não queria voltar para casa. Nessas circunstâncias, naquele momento isso seria um fracasso. Eu ia para a aula e quem me enxergasse tinha a certeza que eu era uma menina. Só que na hora da chamada falavam meu nome masculino. Meus colegas me recriminavam, jogavam papéis em mim. Durante muito tempo passei dias sem aparecer na escola, porque eu não tinha mais condições de ir. Chegava em casa mal, sozinha, sem poder contar com ninguém. Todos os dias eu ia para a aula, enfrentava e não saía para o recreio, porque eu não queria ser vista. Ia embora chorando todos os dias, mas sabendo que um dia isso tudo iria passar. No ano seguinte eu fiquei mais forte, comecei a me impor, a brigar por respeito, ir até a direção para pedir ajuda. No terceiro ano fui eleita a líder da turma. Eu aguentei todo o preconceito do começo, porque coloquei na minha cabeça que eu precisava estudar. Eu já não tinha a minha família por perto, então precisava ter estudo. Concluí o segundo grau e graças a Deus tudo ficou bem. O último ano foi tranquilo, uma conquista. As pessoas não aceitam o que elas não entendem. Isso, claro que a sociedade está se modernizando cada vez mais. Em qualquer momento a sociedade ou a mídia impõe um padrão e as pessoas acham que aquilo é o correto. Mas eu sempre conquistei o meu respeito, sempre à minha maneira, conquistando o meu espaço.

Onde e quando você se permitiu viver o lado sentimental?
Durante esse período da minha vida, enquanto eu não operasse não queria me envolver com ninguém. Eu me sentia incompleta e tinha vergonha do meu corpo. Na verdade, durante muito tempo eu reneguei o meu próprio corpo, como se ele não existisse. Eu não queria mais me ver no espelho, quando eu tomava banho não mais me olhava. Quando me operei eu comecei a viver. Vivi minha fase de solteira, viajei, e hoje sou muito feliz.

Você gostaria de ter nascido mulher?
Eu gostaria, ou ter nascido homem, ou ter nascido mulher, um sexo definido. Meio termo é muito difícil. Eu sabia que era mulher e queria me vestir de mulher. Eu queria ser o que achava que tinha direito.
Mas hoje me sinto muito bem. Algumas pessoas pensam que eu fico triste por não ter nascido mulher. Pelo contrário. Hoje eu sou uma pessoa muito feliz, muito segura. Tenho orgulho disso e as pessoas que convivem comigo também valorizam isso em mim.

Como você vê a mulher hoje? E como você se inseriu no mercado de trabalho?
Eu vejo a mulher cada vez mais inserida no mercado de trabalho, cada vez mais fazendo a diferença. Aqui em Cruz Alta temos muitos exemplos de mulheres cruz-altenses que se destacam na sociedade. O meu trabalho me permite conviver cada vez mais, aprendendo e ensinando a elas. Tenho inúmeras clientes admiráveis. Para mim, o maior exemplo de luta e de garra é a minha mãe. Não teve um dia em que eu não a visse trabalhando para ajudar no sustento da família. Eu vejo essa mulher conquistando cada vez mais espaço, sem a agressão da era da queima dos sutiãs. Eu vejo a mulher fazendo várias coisas bem feitas ao mesmo tempo, diferente do homem, que foca e define o que ele quer fazer bem. A mulher consegue ser uma boa mãe, uma boa empresária, uma boa esposa e uma boa amante. Isso eu acho que é peculiar do gênero. Me inseri no mercado de trabalho, acho que foi até tranquilo demais. Antes de provar o meu bom trabalho, a minha reputação como profissional, eu já tinha meu nome como pessoa. O salão é o meu nome, é a minha cara, tem a minha foto do lado de fora, exatamente porque representa isso. Eu, Vivian Proença, que saí de Cruz Alta, me operei, tive uma história de vida, e foi nisso que eu me inspirei quando abri o meu salão.

Você é admirada por boa parte da população cruz-altense, principalmente por sua postura séria e honesta. De onde vêm essas qualidades?
A minha mãe, meu grande exemplo, sempre disse que independente de quem eu fosse, não precisava ser promíscua, nem vulgar. Tinha de ser honesta. Eu penso que o que existe de mais valioso numa pessoa é a índole. Sempre tive essa meta na minha vida. Independente do que viesse a acontecer comigo, eu sempre quis ter uma boa índole e me dei o valor. As pessoas não me valorizavam então eu passei a me valorizar. Acredito que por isso elas acabaram me valorizando também. Essa é uma conquista pessoal. Assim como a minha mãe conquistou a reputação que ela tem, eu quis seguir o mesmo caminho. Ser uma pessoa bem conhecida, honesta, trabalhadora e divertida. Ter não somente o lado sério, mas também o lado interessante. Eu fico muito feliz, porque a comunidade cruz-altense me aceitou e me acolheu muito bem. As minhas clientes e a todos que comigo convivem, que me conhecem, que conhecem a minha família, podem ter certeza que eu nunca vou esquecer o meu passado, de onde eu vim, tendo mais certeza para onde irei.
Eu percebo que é recíproco esse sentimento que tenho pelas pessoas daqui. Vejo principalmente pelo carnaval. Desfilo todos os anos, nesse último estive impossibilitada de participar porque passei por uma cirurgia. As pessoas me paravam na rua. Isso é uma coisa que eu tenho. Convivo com todo mundo, independente de classe ou raça, porque eu não enxergo sobrenomes nem status social. Eu enxergo o que elas são, independente de qualquer coisa. O diferencial em mim está aí. As pessoas gostam muito de status e eu gosto de pessoas.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Conversas Vespertinas

O Conversas Vespertinas é uma série de entrevistas. Invadimos a casa ou o local de trabalho para saber tudo o que pensam e fazem. Pessoas realizadas, inteligentes ou interessantes, maquiadas ou não, discretas ou expansivas, articuladas ou tímidas. Conversamos com as mais diferentes personalidades, tentando resgatar um pouco do seu passado e presente, seja na nitidez da textura da pele, no olhar cansado ou esperançoso, na fala calma ou ansiosa, na retórica das suas histórias. Como jornalista e fótógrafo, tenho o comprometimento de levar a veracidade aos internautas e leitores dos jornais impressos. O que falarão meus entrevistados, já é de total reponsabilidade de cada um deles! Divirta-se! Conhecer o ser humano pode virar um prazer vespertino!