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Entrevista e Foto: Rômulo Seitenfus
Cheguei à sala onde a minha entrevistada ensina a língua mais falada do mundo. Porém, minha intenção não é perguntar sobre o estudo da língua inglesa. Não ainda. Ela, a herdeira da rede de cinemas que fez história em Cruz Alta, cresceu assistindo aos astros e imaginando um dia estrelar em Hollywood. Sem contar a ninguém sobre esse sonho, frequentou aulas de canto, dança e dedicou-se à segunda língua. Seu sonho de infância não se realizou, mas o preparo a tornou uma brilhante professora de inglês. Morou perto de Hollywood, conheceu muitos países e hoje divide seu conhecimento com pessoas que almejam romper as fronteiras geográficas. Com enorme bagagem intelectual e incontáveis viagens pelo mundo inteiro, ela me recebeu com a delicadeza de uma verdadeira dama.
“La Espellet” tragava seu longo cigarro no fundo da sala. As poltronas originais do cinema antigo instaladas na sua escola a fazem sentir-se a estrela de seus alunos. Dona de um encantador charme feminino, apagou seu recém aceso cigarro para me estender a mão, como fazem as atrizes de Hollywood ao interpretarem os personagens mais envolventes e delicados do cinema internacional. A diferença é que Eveline não é apenas uma personagem. Viveu a história real dos cinemas de Cruz Alta numa época em que manter a cultura cinematográfica no interior do Rio Grande do Sul, já estava fora do seu controle.
Nesta entrevista, conta sobre as dificuldades e os “Anos de Ouro”, as mudanças tecnológicas que o tempo apresentou e a decadência dos cinemas no mundo todo. Expõe o que pensa sobre filmes brasileiros, a influência cinematográfica na política e na cultura, a censura que ainda abala alguns países e o que acha que está por vir no destino dos telões. Ela conta que, ao entrar numa sala de filmes, relembra cada detalhe do seu passado e faz questão de calcular o número de pagantes pelo contraluz da tela, multiplicado pelo valor do ingresso.
Aos 72 anos e com histórias incríveis para contar, ela é a dama dos cinemas.
Poderia nos contar resumidamente a história dos cinemas de Cruz Alta?
A história dos cinemas em Cruz Alta é muito interessante, quase que folclórica. No início do século XX, chegou ao Brasil a notícia de que os irmãos Lumiére, da França, haviam inventado o cinema. Meu bisavô cheio de orgulho por ser francês, resolveu entrar nessa aventura e abrir o primeiro cinema do interior do Rio Grande do Sul. Cruz Alta foi uma das primeiras cidades do interior a ter luz elétrica e nós devemos isso aos ingleses. A companhia elétrica inglesa que estava trabalhando em Porto Alegre veio a Cruz Alta e instalaram luz e saneamento. Lembro bem que na minha infância as calçadas tinham as tampas dos buracos de esgoto escritas: “Made in England”. Isso ocorreu por volta de 1908, 1910. Era um galpão onde hoje é a Igreja Nossa Senhora de Fátima. Há 100 anos os filmes eram de pouca duração, no máximo seis minutos. Ainda não tinham cadeiras, as pessoas sentavam no chão. O nosso hotel situava-se onde hoje localiza-se o Banco do Brasil. O cinema foi ampliando cada vez mais, os filmes ficaram compridos e o meu avô construiu o Cine Ideal, onde fica hoje a Loja Vencal, ao lado do Clube do Comércio. O interessante é que meu pai e minhas tias foram aprender a tocar instrumentos musicais porque os filmes todos eram mudos. Então a família toda produzia o áudio dos filmes apresentados. Violinos, pianos... Eles contam que os filmes eram passados no lençol e o meu pai era o responsável pelo balde com água, evitando o aquecimento do pano banhado por uns segundos para que a sessão desse continuidade. Na época quem lotava o mundo de filmes não eram os Estados Unidos e sim a Alemanha. Com a vinda da Primeira Guerra Mundial acabaram-se os filmes. Meu avô então transformou o cinema num ringue de patinação. Foi a Porto Alegre comprar vários pares de patins. À noite, encenavam peças no teatro porque afinal tinham que comer. Depois da “Grande Guerra”, os Estados Unidos colocaram os dedinhos de fora, mas não foi o “boom” do cinema americano não. E finalmente O Cantor de Jazz foi o primeiro filme falado feito no mundo. Então o meu avô adaptou o maquinário ao filme falado. Nesse ponto a nossa família, os Espellet, seguiram todos os passos da cinematografia, desde o primeiro filme “A Fábrica”, dos irmãos Lumiére, até o encerramento das atividades. Com a vinda do cinema falado, do galpão foi feito um prédio inteiro e de fato Cruz Alta inteira desfilava nos cinemas, porque era o “must” da temporada. Daí veio a Segunda Guerra Mundial. Só que não houveram problemas com os filmes, porque Hollywood já havia tomado conta do mercado. Daí inventaram o tecnicolor, filme colorido. Depois o meu pai assumiu o cinema, construiu o Cine Rex e abriu mais cinco na região. Santo Ângelo, Ijuí, Panambi... e depois sempre lotados na pós-guerra. Na década de 50, eram a sensação de todos os tempos. Foi construido o Cine Rio para desafogar o Cine Rex e o Cine Ideal. Só que na década de 50, junto com os cinemas entrou a televisão e nós da família já começamos a prever que haveria uma interferência nos cinemas. O que não prevíamos é que o motivo do público deixar de ir ao cinema não seria somente a televisão e sim a falta de segurança nas ruas. A década de 70 foi a derrubada dos cinemas em Cruz Alta.
As pessoas ainda te cobram pelo fim das salas de cinema em Cruz Alta?
Quando fechamos os cinemas nos cobravam muito. Aí eu perguntava: “Escuta fulana. Há quantos anos tu não vais aos cinemas”? A pessoa respondia: “Ah, eu acho que há uns dez anos”. Eu dizia: “Então! Como tu queres que eu continue?” Ninguém ia ao cinema. Mas ninguém queria que fechássemos. Algumas me perguntam: “Eveline, porque vocês fecharam os cinemas se a cidade tem 70.000 habitantes e em Porto Alegre eles vivem cheios”? Eu digo: “Vocês se enganam muito. Porto Alegre tem 2.500.000 habitantes. O cinema dos shoppings tem 150 lugares. São raríssimas as vezes que lá enchem, a não ser um ‘Titanic’ ou ‘Avatar’. A proporção no número de habitantes de uma cidade se reflete nas bilheterias. Se 2.500.000 não enchem uma sala de 150, imagine se uma cidade de 63.000 habitantes vai encher uma de 150”... Ficávamos esperando as pessoas e isso não acontecia, então nós passamos para uma outra companhia - essa não aguentou – a mesma que reabriu o cinema no shopping Erico Verissimo há poucos anos.
Quais foram os “Anos de Ouro” da história do cinema?
Sem dúvida foi a década de 50 até 64. Por 14 anos não demos conta da frequência dos cinemas, tanto que foram construídos outros. Eu me lembro que o pai falou: “Eu tenho dinheiro pra comprar uma fazenda ou construir outro cinema”. Como dava dinheiro nós sugerimos construir outro cinema. Tu imaginas! Meu anjinho estava de férias nesse dia (risos). O Cine Rio nos custou uma fazenda porque não quisemos comprar terras pensando que seria a melhor opção. Mas olha, sabes que era lindo de ver? Uma cabecinha do lado da outra. Haviam 1.200 lugares e nós enchíamos, dava um orgulho de ver. Até que acabou. A sorte nossa, da família, é que eram os pontos mais valorizados da cidade. Ninguém construiria um cinema no fim do mundo. Então – com exceção do Cine Rio – ficavam na rua principal. O “Cine Rex que alugamos para a Volpato e o Ideal onde hoje é a Vencal. Por sinal graças a Deus, meu pai não chegou a presenciar a decadência. Essa é não somente a história de uma família como é a realidade dos cinemas no mundo inteiro. Mesmo assim agradeço a Deus por termos tido um negócio de 85 anos, que bem ou mal conseguimos sustentar. Fechamos porque a realidade é essa.
Quais os fatores que causaram o comprometimento das telas?
Cinema é hábito. Na minha infância o prêmio era ir ao matinê no domingo. E esse hábito é que forma o frequentador. A pessoa que não está acostumada não vai, a não ser que seja um Titanic ou algo que o valha. Se tirássemos nota baixa na escola, o castigo era não ir ao cinema no domingo. O automóvel também prejudicou a frequência. Na década de 40, 50, a única maneira de um casal de namorados darem as mãos, se abraçarem, se beijarem, era dentro da sala de cinema. Então todos os namorados iam assistir aos filmes. Com a chegada do automóvel eles não precisavam mais ir. Aqui em Cruz Alta, os mais abastados da época só saíam para passear com seus carros aos domingos. Então essas famílias também não frequentavam mais para passear de carro. Nem o casal, nem os filhos e nem os netos. A violência foi outro fator que impedia as pessoas de saírem de casa. Eu diria que um fortíssimo fator que acabou com os cinemas no Brasil também foi o filme nacional. Teve uma lei da Embrafilmes – hoje não existe mais – que de cada quatro domingos, três deles seria passado um filme nacional. Nós quase morremos, porque ninguém sai de casa para ver filme nacional. Tínhamos um domingo de renda. O restante era filme nacional com exceção dos pornográficos: A Dama da Lotação, Dona Flor e Seus Dois Maridos, filmes com Sandra Bréa, Sônia Braga... Esses sim, lotavam as salas. Mas foi só uma febre. Depois o pessoal cansou. O cinema nacional praticou o que chamamos de autofagismo. Ele devorou a si próprio.
Tu presenciaste muitas mudanças tecnológicas nesses anos frente aos negócios cinematográficos?
Em 80 anos nós passamos do mudo ao falado, do falado ao tecnicolor, do tecnicolor ao cinerama de 190 graus, que por sinal não vingou e nos causou um gasto imenso. Tivemos de investir em telas e lentes caríssimas. O terceira dimensão não é novidade. No final da década de 50 passamos um filme em terceira dimensão: Museu de Cera, com Vincent Price. Os óculos eram cor de rosa e tínhamos de desajustar o foco. Daí o filme se passava fora de foco, tu colocavas os óculos e ficava em terceira dimensão.
Depois voltaram as telas pequenas em filmes pequenos, porque os cinemas tiveram que diminuir o tamanho das salas. Para um cinema de 200 pessoas não poderia ter uma tela gigante.
Achas que melhorou a qualidade dos filmes brasileiros?
Em partes. Posso contar nos dedos os brasileiros que são bons. O Pagador de Promessas é um deles. Também saí encantada do cinema quando assisti a Dois Filhos de Francisco. A qualidade melhorou, mas ainda falta muito. O nosso país tem as melhores novelas do universo. Eu viajo o mundo todo e conheço os canais de TV mundiais. Os prêmios estão aí pra comprovar. Aí eu questiono: Se o Brasil faz tão bem novelas, porque deixam a desejar nos filmes? Quando os nacionais estão em cartaz eu não vou assistir. Acho que tenho aquele trauma de todo dinheiro que perdemos com eles.
O filme Cinema Paradiso trata sobre a questão da censura. Já viste este filme?
(O filme se passa numa pequena cidade italiana com um cinema comandado por padres. Nas telas os beijos eram censurados. Quando houve a decadência, o ex – projecionista entregou para um amigo - antes criança e agora homem – todas as cenas omitidas. Quando esse mesmo homem volta para a cidadezinha - no presente já bem sucedido – ele entra no cinema decadente e vê todas as cenas no telão. Os beijos proibidos tornam o filme emocionante)
Maravilha. Maravilha! Um dos melhores filmes que eu já vi. Eu chorava porque inclusive naquela parte da censura muitas vezes nós fazíamos isso aqui. Cortávamos cenas incríveis. Hoje não seria censura, mas na época era por questão de dois minutos. Um abraço, um beijo, não eram cenas chocantes e na época. Cortávamos porque é muito fácil. Tu cortas e depois colas de novo. Antes de entregar o filme, colávamos novamente.
Mas tu vias as cenas censuradas?
Claro! Milhões de vezes! O meu pai não nos deixava ir aos cinemas ver as partes censuradas, mas íamos mesmo assim. Então esperávamos ele sair e corríamos para a cabine (risos). Minhas irmãs, os primos e eu. Acho que no fundo o pai sabia. Mas também, a censura da época comparando com a de hoje, tenhas dó. As imagens omitidas da época, tu passarias hoje em matinês sem nenhum problema.
Como ocorria esse controle da censura?
A censura vinha com o filme acompanhado de um certificado do juizado de menores e o fórum mandava um fiscal. Quando acontecia de termos de cortar as cenas, nós explicávamos a situação para o público e eles entendiam.
Como tu vês o futuro do cinema?
O cinema não vai acabar nunca. Mas, como estão acabando as salas de projeção e a tecnologia já está toda digitalizada, acredito que o futuro do cinema será na nossa própria casa. Será gerado um transmissor ao vivo de acordo com o tempo de cada pessoa que vai escolher o momento de ver o filme. Se a matriz for em São Paulo, por exemplo, eles acionarão o filme para a pessoa assistir em casa. Já temos esta tecnologia, mas não oferecem os lançamentos. E acredito que incluirão os lançamentos e isso não vai demorar muito para acontecer, embora no início o custo será elevado.
Se existisse um projeto da prefeitura ou do governo de construir um cinema público em Cruz Alta, tu achas que funcionaria?
Olha, várias cidades do interior tentaram investir nessa ideia. Prefeituras patrocinaram, fundaram clubes de cinema, as pessoas pagavam mensalidade e não deu certo. Não adianta. Perdeu-se o hábito.
Quais os filmes que despertam a tua visão cinéfila?
E o Vento levou foi o que mais me marcou. Nada bate ele. Depois o que tu mesmo citaste, Cinema Paradiso. Um filme que foi feito para ser um classe B e se tornou um ‘must’ do cinema é Casablanca. Fantástico! O Pagador de Promessas também me marcou muito. É uma vida inteira voltada ao cinema. Difícil citar apenas alguns.
O que sentes ao entrar numa sala de cinema? Matas a saudade?
Sou cinéfila. Pego ônibus até Porto Alegre só pra ver os lançamentos na tela grande. A Primeira coisa que eu faço quando entro numa sala de cinema é contar o número de pessoas que se fazem presentes na sala e multiplico pelo valor do ingresso (risos).
Tu vês um filme mais de uma vez? Gostas de assisti-lo novamente depois do passar dos anos?
Sim. Adoro fazer isso porque a gente vê o valor do filme com o passar dos anos. Se for bom ele vai ter ainda o impacto depois de um tempo.
O 3D conquistou boa parte dos cinéfilos. Achas que o cinema vai adotar essa ideia permanentemente?
Acredito que sim. Eu assisti ao Avatar primeiramente sem os óculos e depois fui assistir novamente, desta vez com os óculos. É uma diferença incrível. Mas acredito sim que essa ideia possa se difundir, embora não seja uma tecnologia tão moderna. Já existia na história do cinema. Mas acredito que até a TV adote o 3D.
O que tu achas dos filmes produzidos pela Índia?
Eu estive na Índia no auge da campanha de esterilização masculina. Os homens que se esterilizassem ganhavam vários brindes: Um saco de arroz, um guarda-chuva e dez ingressos para o cinema. O cinema ainda faz parte da vida, dos sonhos do ser humano. Eu nunca esqueço que em 1970, quando já estávamos dando os últimos suspiros, eu fui assistir a um cinerama lá. Um cinema imenso de uns 2.500 lugares. Os cartazes de filmes ocupavam a fachada inteira. Voltei à Índia em 2005 e continuam os cinemas. O filme produzido por eles, Como ser um milionário, mostra bem a realidade da Índia. Eles ganharam o Oscar merecidamente. Trabalham com todo o misticismo da cultura, vivem seus sonhos.
E esta questão dos sonhos que salientas bastante, de onde trazes essa ideologia?
(Risos)... Isto tudo vem justamente da educação que eu tive. Minhas irmãs e eu fomos educadas praticamente dentro de um cinema. Meu pai conversava conosco, falava sobre os artistas. Eu me tornei professora de inglês devido ao cinema. Na época um filme chamado Fiesta Brava, com a Esther Williams. Eu assisti ao filme 11 vezes e decorei todos os diálogos em inglês. Havia uma dança que se chamava La Raspa e foi lançada por causa do filme. É claro que eu aprendi a dança. Eu cantava, dançava. Quando tinha oito ou nove anos o meu sonho era ser artista de cinema. Mas não o cinema no Brasil que eu já detestava. Era ser artista de cinema americano (risos)... E logicamente tinha de saber inglês, dançar, cantar, tocar piano. Então estudei tudo isso sem a minha família saber da minha verdadeira intenção. E imaginas, hoje em dia talvez eu fosse atrás desse sonho. Mas em 1940 era ridículo pensar dessa maneira. Mas esse sonho abriu as portas para eu ser uma das pouquíssimas professoras de inglês da época, e tu vês que indiretamente eu não deixei de ser uma artista, porque um professor é um artista. Eu sou a estrela dos meus alunos.
Dear Teacher Eveline,
ResponderExcluirFirst teacher we never forget...You were my first and my best English teacher...
So you are forever in my heart
Barão
Bom dia, não conheço a Sra Eveline, mas deixo aqui um video que com certeza irá referencia-la muito bem.
ResponderExcluirhttps://www.youtube.com/watch?v=s66ZfI_OoGM