Por Rômulo Seitenfus
Esta é a história da menina que nasceu no corpo de um menino. Cruz-altense, cresceu numa sociedade de padrões definidos. Sofreu preconceitos, lutou sozinha e foi buscar seu lugar ao sol na capital gaúcha. Seu grande sonho era estudar e se tornar uma mulher de destaque. Os inúmeros obstáculos enfrentados, também na cidade grande, serviram de impulso para alcançar seus objetivos.
Uma reportagem que se passava no noticiário da televisão local, anunciava a cirurgia da troca de sexo. Correu para o hospital divulgado, para se candidatar a uma vaga aos bisturis. Diagnosticada em todos os testes médicos como transexual, foi aprovada e submetida às operações.
Eis que surge Vivian Proença. Uma mulher linda, inteligente, e cheia de histórias para contar. Viajou pela Europa e especializou-se na área da beleza. Passou pelos estágios da grande mudança e trocou seus documentos da nova identidade, que permite legitimar-se como cidadã de nome feminino. Retornou para a cidade natal, para resgatar tudo aquilo que antes estava fora do seu alcance. Mais feliz do que nunca, hoje leva a vida que sempre pediu a Deus. Dona de um conceituado salão de beleza que leva seu nome, Vivian Proença é hoje a mulher de destaque que um dia almejou ser. Cheguei no salão de beleza para conversar com a hair designer. Enquanto a minha entrevistada finalizava o cabelo de uma de suas clientes, aguardei no sofá, antes do início do bate-papo. O salão, decorado em tons de branco, expressa um ar moderno na arquitetura do ambiente. O tronco de uma possante árvore instalada no teto do salão, causa impacto aos olhos de quem o vê.
Vivian veio ao meu encontro. Os finos traços do rosto e o tom de voz extremamente feminino, não causam dúvidas de que estava na frente de uma verdadeira mulher.
Autêntica e forte, ela conta as dificuldades e conquistas. Assumidamente transexual, desdobra-se no papel de mulher brilhante e profissional atuante, sem esquecer o seu passado e a sua trajetória.
Você pode nos contar um pouco da sua história?
Nascida cruz-altense no dia 1º de abril de 1983, tive uma infância um pouco diferente. Eu me sentia perdida, porque nasci com o sexo biológico masculino, mas com a cabeça e a alma feminina. Desde que eu me conheço por gente, sempre fui adepta às brincadeiras de garotas. O meu maior choque foi quando entrei no colégio e existia essa diferença do menino e da menina. Isso foi uma agressão porque, na minha cabeça eu sempre fui mulher, sempre tive essa essência feminina. Foi muito difícil, porque a sociedade em si é muito preconceituosa. A minha família não entendia, sofri desde criança. Em nenhum momento senti aquilo como uma escolha. Sempre soube que nasci assim, só que me questionava o porquê de todo aquele sofrimento. Não entendia e não sabia o que eu havia feito para passar por tudo aquilo. Mas aprendi com a maturidade e infelizmente tive de sair de casa muito cedo. Com 14 anos, fui embora para Porto Alegre e foi lá que eu me aceitei. Não bastava somente as outras pessoas me aceitarem. Eu precisava me aceitar também para enxergar a beleza da minha pessoa. Sou singular, era diferente de tudo e é muito mais fácil ver o diferente como algo ruim do que bom. Tenho certeza que, se tivesse nascido biologicamente mulher, eu não seria a pessoa que sou hoje. O que sou hoje, é resultado de toda a minha vivência até agora. Foi difícil, mas necessário, fazia parte da minha vida. Eu lutei para estar ali, lutei pelo meu espaço. Sempre disse que os outros não eram obrigados a me amar, nem a gostar de mim. Mas eram obrigados a me respeitar. Todo mundo tem direito ao respeito. Eu batalhei e conquistei o meu. Fui uma das mais jovens transexuais a realizar a cirurgia no Rio Grande do Sul. Aos 19 anos me operei, aos 20 mudei toda a minha documentação. Troquei desde a certidão de nascimento. Sei das minhas limitações, sempre vivendo a realidade de ser uma transexual. Mesmo com a alma feminina, mesmo tendo uma postura feminina mediante à sociedade, eu sei que eu sou transexual e tenho orgulho disso.
Voltando um pouco à sua infância... Você se via como mulher e quando ia à frente do espelho se deparava com uma figura masculina. Como era isso?
Era muito triste. Eu tinha preconceito comigo. Na infância sofri muito, porque não sabia como lidar com essa situação. Eu não podia me abrir com meus pais, porque tinha certeza que eles não entenderiam. As pessoas na minha volta não compreendiam toda aquela situação, me recriminavam. Eu não me entendia, porque eu não era homossexual, não era travesti. Na minha cabeça eu era uma menina. Hoje, existem estudos que apoiam os transexuais porque, cientificamente isso é uma disfunção do cérebro. A pessoa nasce com o sexo biológico masculino e com o sexo psicológico feminino.
Quando decidiu realizar a cirurgia de mudança de sexo e como isso ocorreu em sua vida?
Eu tinha 16 anos e morava em Porto Alegre há dois. Assisti a uma reportagem na televisão, que o hospital de clínicas estava fazendo a cirurgia da mudança de sexo. Para mim foi uma luz no final do túnel, porque eu achei que isso fosse algo inatingível. Era um sonho. Antes eu era infeliz, pois não aceitava aquele sexo biológico. Me recriminava, me repudiava, não tinha relações, não namorava. Eu era sempre fechada dentro de casa. Quando vi essa reportagem, fui correndo para o Hospital de Clínicas. O tratamento era feito em dois anos e quando completei meus 18 anos, realizei dois anos de tratamento. Tive acompanhamento com psicólogos, psiquiatras, endocrinologistas, uma equipe médica que realiza a avaliação para esclarecer se a pessoa é, de fato, transexual. O meu caso foi constatado logo no início, mas como é uma lei tendo que cumprir esses dois anos, quando eu completei os 18, precisei de uma liminar do juiz para eu operar. A maioridade se dava aos 21 anos, mas com essa permissão pude realizá-la sem problemas. Eu sempre dizia que a metade do caminho seria a cirurgia e a outra metade seria a troca dos meus documentos, e que depois disso eu me sentiria completa. Aos 19 anos eu consegui realizar a operação e poucos meses depois foi efetuada a troca dos documentos.
Qual a sensação que você sentiu depois dessa grande mudança?
Eu passei a me sentir completa. Um grande alívio e uma sensação de vitória. Conquistei tudo sozinha, em princípio sem o apoio das pessoas que me rodeavam. Eu tive somente o apoio da minha família de longe e isso foi uma conquista minha. Um gostinho que não tem comparação. A partir disso, prometi pra eu mesma que seguiria a minha vida fazendo as coisas que sempre quis. Foi aí que continuei meus estudos, fui me profissionalizar, morei um tempo na Itália. Foi aí que eu comecei a viver.
Hoje se sente inteiramente mulher?
Me sinto 100% mulher. Admiro muito as mulheres e tenho vários exemplos delas na minha volta. A primeira é a minha mãe, que desde que a conheço é uma mulher muito batalhadora. Trabalhou na rua, no centro de Cruz Alta. Aprendi a amar a minha cidade. Saí daqui com muita mágoa e de repente senti que uma missão vinha para resgatar o que eu não consegui antes.
E como aconteceu isso?
Chegou um momento em que a minha mãe estava precisando de mim e eu vim embora. Confesso que com um pouquinho de sofrimento, porque eu pensava que nunca iria voltar para Cruz Alta. De repente eu me apaixonei novamente pela minha cidade, pelas pessoas daqui. Hoje eu vivo um resgate de tudo o que não pude viver quando passei minha infância aqui. Essa cidade me faz feliz. As pessoas que me rodeiam, as minhas clientes, o carnaval que participo todos os anos. Estou feliz com o meu salão de beleza. Está crescendo cada vez mais, uma vitória a cada dia.
Podemos dizer que você conquistou ser mulher?
Eu sempre digo que eu criei a mulher que eu queria ser. Eu idealizei a mulher que eu sonhava e fui atrás dessa realização. Hoje eu posso dizer que sou. Foi uma grande vitória de uma batalha enorme que venci.
O que mais lhe surpreendeu depois de tudo isso? Há algo que você não esperava e lhe aconteceu?
O que mais me surpreendeu foi que tudo o que eu queria era ser mulher. E depois de tudo isso, eu me aceitei como transexual. Eu não me aceitava antes, praticamente repudiava. E de repente, me aceitei como uma transexual operada, com documento trocado, que posso viver, pode casar, como uma pessoa que se tornou mulher, mas que no fundo eu sei que sou uma transexual pelo caminho que percorri para chegar até aqui. Essa foi a minha grande surpresa.
Você teria alguma história inusitada que lhe aconteceu em função da troca de identidade?
Os meus documentos com minha nova identidade e meus papéis ainda não haviam chegado. Eu estava na Europa, fui levada para uma sala e constataram que eu era mulher. Como nos documentos constava a minha antiga identidade, fiquei presa por cinco dias.
Como a sua família reage? Eles te aceitam bem hoje?Sim. Hoje. É muito difícil essa situação. Eles não compreendiam a realidade. Eu sou a mais nova depois de três mulheres e nasci no lugar do único filho homem. Quando eu tinha uns três, quatro anos, minha mãe viu que tinha algo diferente. Eu sempre fui muito feminina, mas isso era da minha natureza, nada era forçado. Quando tinha uns 12 anos já sabia quem eu era. O meu pai não aceitava, era um inferno conviver dentro de casa. Aos onze anos comecei a tomar hormônios e os seios começaram a crescer. Tínhamos piscina em casa e eu já não queria mais entrar para nadar. Ele me via na rua com as amizades, cada vez que chegava em casa era uma briga. Então minha mãe me chamou para conversarmos. Ela quis saber o que estava acontecendo e me perguntou se eu não gostava de mulheres. Respondi que eu era uma mulher. Ela me perguntou se eu tinha certeza que era aquilo que eu queria. Disse a ela que não se tratava de querer e sim de ser. Não tive escolha em nenhum momento. Eu nasci assim. Essa história de opção sexual não existe. É impossível que uma pessoa em sã consciência vá optar por passar tudo o que eu passei. Acontece que eu não poderia em hipótese nenhuma deixar de ser eu mesma. Ou escolheria viver no corpo de um homem que não era eu, porque o eu interior era uma mulher. Aos quatorze anos tive uma oportunidade de ir embora, aproveitei e fui. Minha família não aceitava. Eles diziam que aqui eu não conseguiria viver. A minha família veio a me aceitar anos mais tarde. Me falaram que ia ser muito ruim para mim e também para eles. Naquele momento eu entendi que eu teria de me retirar da cidade.
E como foi sair de casa nessas circunstâncias?
Foi muito difícil. Eu comecei a estudar. Em nenhum momento eu queria parar meus estudos. Cheguei em Porto Alegre ainda adolescente, telefonava chorando todos os dias para minha mãe. Um dia a minha irmã atendeu ao telefone e me disse que não adiantava ligar chorando, porque a mãe ficava mal aqui, não resolvia esses problemas e eu também não ficaria bem. Acrescentou que, ou eu voltasse para casa ou enfrentasse isso tudo, porque iria passar. Aquilo foi um estalo. Eu tinha de enfrentar, não queria voltar para casa. Nessas circunstâncias, naquele momento isso seria um fracasso. Eu ia para a aula e quem me enxergasse tinha a certeza que eu era uma menina. Só que na hora da chamada falavam meu nome masculino. Meus colegas me recriminavam, jogavam papéis em mim. Durante muito tempo passei dias sem aparecer na escola, porque eu não tinha mais condições de ir. Chegava em casa mal, sozinha, sem poder contar com ninguém. Todos os dias eu ia para a aula, enfrentava e não saía para o recreio, porque eu não queria ser vista. Ia embora chorando todos os dias, mas sabendo que um dia isso tudo iria passar. No ano seguinte eu fiquei mais forte, comecei a me impor, a brigar por respeito, ir até a direção para pedir ajuda. No terceiro ano fui eleita a líder da turma. Eu aguentei todo o preconceito do começo, porque coloquei na minha cabeça que eu precisava estudar. Eu já não tinha a minha família por perto, então precisava ter estudo. Concluí o segundo grau e graças a Deus tudo ficou bem. O último ano foi tranquilo, uma conquista. As pessoas não aceitam o que elas não entendem. Isso, claro que a sociedade está se modernizando cada vez mais. Em qualquer momento a sociedade ou a mídia impõe um padrão e as pessoas acham que aquilo é o correto. Mas eu sempre conquistei o meu respeito, sempre à minha maneira, conquistando o meu espaço.
Onde e quando você se permitiu viver o lado sentimental?
Durante esse período da minha vida, enquanto eu não operasse não queria me envolver com ninguém. Eu me sentia incompleta e tinha vergonha do meu corpo. Na verdade, durante muito tempo eu reneguei o meu próprio corpo, como se ele não existisse. Eu não queria mais me ver no espelho, quando eu tomava banho não mais me olhava. Quando me operei eu comecei a viver. Vivi minha fase de solteira, viajei, e hoje sou muito feliz.
Você gostaria de ter nascido mulher?
Eu gostaria, ou ter nascido homem, ou ter nascido mulher, um sexo definido. Meio termo é muito difícil. Eu sabia que era mulher e queria me vestir de mulher. Eu queria ser o que achava que tinha direito.
Mas hoje me sinto muito bem. Algumas pessoas pensam que eu fico triste por não ter nascido mulher. Pelo contrário. Hoje eu sou uma pessoa muito feliz, muito segura. Tenho orgulho disso e as pessoas que convivem comigo também valorizam isso em mim.
Como você vê a mulher hoje? E como você se inseriu no mercado de trabalho?
Eu vejo a mulher cada vez mais inserida no mercado de trabalho, cada vez mais fazendo a diferença. Aqui em Cruz Alta temos muitos exemplos de mulheres cruz-altenses que se destacam na sociedade. O meu trabalho me permite conviver cada vez mais, aprendendo e ensinando a elas. Tenho inúmeras clientes admiráveis. Para mim, o maior exemplo de luta e de garra é a minha mãe. Não teve um dia em que eu não a visse trabalhando para ajudar no sustento da família. Eu vejo essa mulher conquistando cada vez mais espaço, sem a agressão da era da queima dos sutiãs. Eu vejo a mulher fazendo várias coisas bem feitas ao mesmo tempo, diferente do homem, que foca e define o que ele quer fazer bem. A mulher consegue ser uma boa mãe, uma boa empresária, uma boa esposa e uma boa amante. Isso eu acho que é peculiar do gênero. Me inseri no mercado de trabalho, acho que foi até tranquilo demais. Antes de provar o meu bom trabalho, a minha reputação como profissional, eu já tinha meu nome como pessoa. O salão é o meu nome, é a minha cara, tem a minha foto do lado de fora, exatamente porque representa isso. Eu, Vivian Proença, que saí de Cruz Alta, me operei, tive uma história de vida, e foi nisso que eu me inspirei quando abri o meu salão.
Você é admirada por boa parte da população cruz-altense, principalmente por sua postura séria e honesta. De onde vêm essas qualidades?
A minha mãe, meu grande exemplo, sempre disse que independente de quem eu fosse, não precisava ser promíscua, nem vulgar. Tinha de ser honesta. Eu penso que o que existe de mais valioso numa pessoa é a índole. Sempre tive essa meta na minha vida. Independente do que viesse a acontecer comigo, eu sempre quis ter uma boa índole e me dei o valor. As pessoas não me valorizavam então eu passei a me valorizar. Acredito que por isso elas acabaram me valorizando também. Essa é uma conquista pessoal. Assim como a minha mãe conquistou a reputação que ela tem, eu quis seguir o mesmo caminho. Ser uma pessoa bem conhecida, honesta, trabalhadora e divertida. Ter não somente o lado sério, mas também o lado interessante. Eu fico muito feliz, porque a comunidade cruz-altense me aceitou e me acolheu muito bem. As minhas clientes e a todos que comigo convivem, que me conhecem, que conhecem a minha família, podem ter certeza que eu nunca vou esquecer o meu passado, de onde eu vim, tendo mais certeza para onde irei.
Eu percebo que é recíproco esse sentimento que tenho pelas pessoas daqui. Vejo principalmente pelo carnaval. Desfilo todos os anos, nesse último estive impossibilitada de participar porque passei por uma cirurgia. As pessoas me paravam na rua. Isso é uma coisa que eu tenho. Convivo com todo mundo, independente de classe ou raça, porque eu não enxergo sobrenomes nem status social. Eu enxergo o que elas são, independente de qualquer coisa. O diferencial em mim está aí. As pessoas gostam muito de status e eu gosto de pessoas.
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